Poema Infinito (698): A chave
Quando era pequeno, a bicicleta era grande demais. Então punha-me a correr pensando nela. E saltava muros e corria com a roda e ia até casa dos vizinhos, sobretudo do Birtelo, e com ele comia a sopa. E dava voltas no terreiro com a roda a ganhar asas. Tinha sempre sede de prolongar o tempo. Depois tudo ficava azul. Ia então brincar aos piratas e também assustar insetos e deslumbrar as folhas das couves ou a penumbra das casas ou as histórias que por vezes saíam de dentro dos livros para apanharem um pouco de ar. A mãe esfregava as janelas. E cantava. E rezava para me proteger durante as trovoadas Santa Bárbara bendita que no céu está escrita com papel e água benta livrai o meu menino desta tormenta e também a mim se não for pedir muito. Era ela que me garantia o sono e a salvação e me acalmava e me escondia dos espíritos maus. E depois ia pentear-se para a frente do espelho. E o meu pai tardava. Dentro da minha cabeça começaram a voar as palavras. Eternas. Voavam como doidas. O mundo é a continuação da minha aldeia. Das mulheres com os olhos cheios de montanhas e searas e com as mãos repletas de legumes do jericó. A avó tinha a carnação de uma pavia. Tinha uma voz rápida. E ria quando lhe apetecia. Mas pouco, não fosse o Diabo tecê-las. Já a mãe gritava e saltava quando via uma cobra. Quem ama a luz acaba por perder o medo à escuridão. O avô era a extensão da floresta. Nunca me perdi nela. Por vezes tinha medo, mas dei sempre com o caminho de regresso. Alguém me iluminava os passos de volta. Talvez esse mesmo alguém que me ilumina a poesia. As pessoas daquele tempo eram feitas de terras planas, as de agora são geradas aos socalcos, como sendo feitas aos degraus que não vão dar a lado nenhum. As anteriores lambiam cuidadosamente as suas feridas em silêncio, as de agora expõem-nas, como se estivessem numa feira de vaidades e até fazem canções com elas. Os seus antecedentes comiam pão com uvas e eram felizes. À sua maneira. Os de agora alimentam-se de inquietação. Deixam que o tempo os atrapalhe. As crianças não se sabem defender, apenas conseguem agredir e agredir-se. Eu continuo a abrir a boca à noite e a soletrar o mundo todo aos bocadinhos. Por vezes oiço a luz, o que é estranho. Lembro-me então de ver cair anjos do céu, como tordos abatidos pelo chumbo do mal. Depois desfilavam na minha frente horizontes sucessivos. E eu com as mãos enfiadas nos bolsos. Algumas vezes, as catástrofes eram adiadas. Outras, precipitavam-se em cima de nós como granizo. E eu fechava os olhos e chamava os dragões que atacavam as intempéries e cantavam em uníssono. A mãe escrevia cartas. E cantava. E penteava-se. E sorria. E o pai tardava. Por vezes apareciam cavaleiros mutantes que distendiam o tempo e faziam parar o vento e o céu ficar brilhante. E defendiam a nossa esperança com a sua esperança e também com as suas espadas brilhantes. Até os grilos falavam. E eu concretizava o avô e a avó e a mãe e o pai. E corria por ali fora com os olhos cintilantes. Sabia de cor o cavaleiro, o seu cavalo e a sua espada. Sabia de cor o rei e o seu poder. Sabia de cor a alegria. E a tristeza. E tentava arrancar a luz divina dos espelhos. Então a luz apagava-se. Punha-me a escutar os murmúrios da mãe e do pai que tinha finalmente chegado. Não sabia bem o que pensar. Se rir, se chorar. Essa é a minha chave universal.