Poema Infinito (702): Deslumbramento
Sente-se desde aqui a pulsação do silêncio. Os verdelhões debicam os figos lampos da figueira. A fonte antiga parece que chora. Esta terra foi sempre escassa tanto de centeio como de mimos. A maioria dos castanheiros já morreu de doença e as giestas estão quase deitadas por causa das intempéries. Apenas as nuvens boiam no céu como antigamente. O deslumbramento pode ser infinito. E a ladeira acentuada, pejada de regos e pedregulhos, agrava a descida para o mosteiro. O velho cipreste ajuda na lavrada das ruínas. Entre as silvas e o musgo, sardões gozam o sol. De meu tenho os caminhos. E não preciso de mais. Flechas de uma luz esplêndida atravessam a folhagem dos velhos carvalhos. Por aqui agora passeiam sombras e ecos. Sente-se um vago perfume a morte. Ao glorificado Templo de Salomão também lhe chegou a decadência. Até a preguiça tem o seu lado positivo. No jericó produziam-se cebolas que davam e sobravam para refogar um vitelo e um porco de ceva. Ali perto, lembro-me bem, estava um banco de pedra onde a minha mãe se ia sentar para banhar a sua face de luz. Era ali que os seus olhos ficavam misteriosos. Deus já começou a morrer por aqui há muito tempo. Ainda sinto o sabor ácido dos deliciosos frutos da desobediência. Por aqui está tudo embalsamado, os livros, as aranhas, os corpos das santas e dos santos, os retratos, as memórias, os prédios, as salas fechadas, os animais bravios, a velha cruz, os socos, as virtudes e os defeitos, as gravuras, a alegria, a tristeza e os faunos gaiteiros. E até o São Sebastião com o corpo atravessado por setas ali deixadas para lhe multiplicarem as dores. E ele com cara de masoquista. Tudo em claro-escuro como se Leonardo da Vinci tivesse desistido de pintar. Esta intimidade é constituída por séculos de ruínas. Mas os livros mutilados são os que dão mais pena. Tudo isto pode ser um pouco tarde, mas ainda é lindo. Seja esta beleza aquilo que for. Por vezes custa aguentar esta longa divagação sobre a carência. Sobre o erotismo. Sobre a divindade. Esta música parte da desilusão e da carência. Da tristeza. A alegria está no outro lado da realidade. A fé é um dogma. De fé. De pé e de joelhos. E para ali estão santos e santas com os olhos vendados, segundo o velho rito da Quaresma. E as horas canónicas a desfiarem-se. Antigamente as palavras caíam em cima das fragas. Agora acontece o contrário. Nem o Senhor da Ajuda nos consegue socorrer. Isto já vem de longe, as ruínas a arruinarem-se. E o tempo a consumir os templos com o seu silêncio intemporal. Onde antes cresciam mimosas, hoje só medram silvas. E nos altares apenas restam flores de plástico. E no baldaquino apenas se destacam alguns anjos sapudos de um amarelo enferrujado. Apenas as sombras lembram o misticismo. O resto é mofo. Nos antigos campos de centeio somente medram ervas altas. Cantam os ralos nos beirais da quinta. A claridade é difusa. As árvores e as torres do castelo parecem figuras suspensas. E a penumbra a prolongar-se até ao infinito. E a neve a esmerilar a luz. E a eternidade a esboçar as estrelas. E as insónias a cortarem como arestas de cristal. Tudo tão cheio de silêncio que até dói. E os anjos camponeses a entrarem pelas janelas, minuciosos, inquietos. A procurarem os seus utensílios. A espanarem as asas como se fossem aves de capoeira.