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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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29
Fev24

Poema Infinito (703): Fronteiras

João Madureira

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Fui passear pelo meio dos campos cobertos de geada. No meio do nevoeiro. Daqui observo o casarão em ruínas. E o seu portão ferrugento. Alguém o deixou meio aberto. Contemplo a melancolia, a folhagem, as estátuas e as colunas derrubadas. O regresso é uma espécie de dor aguda. Os nossos olhos de animais ardentes acabarão por encontrar-se. Tudo isto parece que foi bombardeado, expondo as entranhas à curiosidade dos turistas. Todos vão adorar uma caixa com soldadinhos de chumbo do tempo da guerra civil espanhola. Estamos numa zona de fronteira. Há por aqui um cheiro a desordem e a abandono. Alguém se afadiga em cobrir as raízes das plantas com palha para as proteger da geada. Os dias são agora mais curtos. A luz do sol começa a iluminar os terraços e a aquecer a terra húmida. O passar do tempo continua a espalhar angústia no meio das ruínas. Todos devemos celebrar o sol que nos irmana e o riacho que nos mata a sede. As flechas de Guernica chegarão no dia seguinte. E as colinas de António Machado arderão ao terceiro dia como uma espécie de morfina celestial. Os anjos camponeses, com as veias dilatas, os sexos em fogo, na sua estrutura imóvel que refratam as chamas interiores, incendiar-se-ão por dentro. A eternidade a conceber estrelas. Tudo está um pouco mais turvo depois da inquietação da atmosfera. E a inquietação a ganhar peso e as insónias a polirem os cristais. E as lâminas de luz a espalharem chuva e esplendor, a fazerem brilhar a Terra até que os seus movimentos cessem. Ali estão os cálices sagrados cheios de vazio e repletos de silêncio, o voo dos pássaros cegos, as anatomias rápidas, as nuvens, o vento leve, as folhas atónitas. E o amor a sumir-se por entre os dedos, como se fosse areia. E a areia a derreter-se até formar vidro. A suavidade do céu. Os prados. A névoa trémula. As bestas bíblicas a fabricarem pesadelos. As casas desidratadas. Os filhos. O milagre da vida. Os espíritos estranhos. A febre. A sede. O delírio. As margens fluentes dos rios. O frémito do fogo. A paciência geológica da terra. A fluidez complexa do voo das libelinhas. Espanto-me com a lentidão da terra, com a indiferença da matéria, com a chegada dos ruídos. A morte está ali um pouco mais à frente. A olhar, como se fosse cega. A chorar como se soubesse. Tudo a surgir de forma acidental. A erguer-se de forma curva. E as letras dos livros a arderem por dentro. A cavalgarem o tempo apenas de um lado. A reinventarem as paisagens escorregadias. E a ordem a definir a desordem e a realizar o número perfeito da prestidigitação e a fidelidade das metamorfoses e a desenhar a geometria ambígua das cidades e a incendiar os templos antigos e a escrever na interseção das paredes. O sol começa a incendiar as avenidas e a desenhar a sombra dos edifícios e das estátuas. Os fundamentalistas queimam as virgens de palha. Também os anjos ansiosos começam a arder. De desejo. E Bosch a pintar os buracos infernais do pecado. Tudo se perde no infinito. Até o amor. Passamos a vida à espera. Tudo balança como um pêndulo, as gargalhadas, os estados de euforia, os pássaros mentais, as paranoias, as pontas dos dedos. A consciência. Mesmo os profetas acabam por desaguar na praia, junto ao mar, cheios de suspeições, com as mãos postas como se fossem camaleões de Deus. Já não há lugar para a premeditação.

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