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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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14
Mar24

Poema Infinito (705): Os proletários

João Madureira

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Os proletários continuam a subir aos céus. O seu brilho é ofuscante. Conseguem, com muito esforço, manter a cabeça ereta. Homens e mulheres de todas as raças, ascendem nus e olham para os seus sexos como se estivessem ali a mais. São anjos feitos de ferro, potássio, cálcio, sódio. Só mais um esforço e logo terminarão a tarefa. Acabaram os prelúdios, basta abrirem a boca para conseguirem gritar a sua gramática operária. Sentem-se, por breves momentos, mais sintáticos, mais económicos, mais sociais. Mas menos humanos. Durante séculos muitos foram irmanados com as pedras no fundo das minas, outros dedicaram-se à cerâmica e transformaram o barro em pratos e faianças e jarras ou noutros artigos mais ou menos admiráveis, baratos ou caros. Os mais intrépidos e corajosos fizeram chispar os infernos nos estaleiros de aço, fazendo ou desfazendo navios. Sobre o lado esquerdo do céu, sobem numa espécie de torre de refrigeração de uma central nuclear, os operários fabris, comerciais e bancários, acariciando o ferro, as pedras, a madeira, o plástico, o algodão, a lã e o papel impresso. Outros leem ainda Platão, Aristóteles, Hegel e Kant, ou transportam debaixo do braço telas pintadas. Tudo a subir aos santos céus: a cultura, a política, a civilização, os estados, as fronteiras, as catedrais, o ouro, o incenso e a mirra. Tudo a balançar, a oscilar, a palpitar, a crescer e a mingar. Todos a contar os minutos, as horas, os dias e os anos como se estivessem a rezar o terço. Lá em baixo, os que ficaram continuam a calcular, a repartir, a cortar e a recortar, a embalar e a expedir os excedentes pelos comboios, pelos cargueiros marítimos, por aviões, por camiões e a fazerem as últimas ligações por faxes, telemóveis, correio eletrónico e embrulhos almofadados. A incerteza cresce, oscila e balança. Os homens e as mulheres continuam a transformar-se em barro. Todos dentro do sonho, acariciando-se e abençoando tudo. As aparições tocam o sol e as máquinas aveludadas, aflorando os corpos, tateando a alegria e a noite que se faz dia e as bocas beijam-se como se fossem murmúrios. Tudo se move lentamente para a frente e para trás. As cabeças inclinadas, choram sobre os seus próprios corpos. Tudo continua a subir devagar. Sobretudo os anjos proletários. O ar vibra mais onde o sol cai a pique. Os romeiros de Canterbury continuam a ser os cães fidelíssimos de Deus, deixando dedadas de sangue nas paredes dos prostíbulos. Querubins epiléticos fazem pela vida. Construções líquidas sobem no ar, libertando-se da solidão. Turbas de eunucos empurram o céu até ao inferno. Deus faz que dorme. Muitos podam a árvore do mal, proletários e burgueses, cristãos, islamitas e ateus. Todos agnósticos à sua maneira. Ainda não se sabe se são pessoas ou fotografias. Tudo acabará por arder antes do juízo final. Tudo o que fomos e aquilo que fizemos se transformará em poeira. O recolher obrigatório ainda decorre. Há sempre espaço no céu, mas de pouco serve. Como ninguém lá pode construir, não tem valor nenhum. Os homens e as mulheres que usam máscara sorriem sem que se veja. Alguém tem de o fazer. Uma ambulância da Cruz Vermelha choca de frente com outra do Crescente Vermelho. Não há feridos. Apenas mortos.

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