Poema Infinito (707): Sombras dentro dos espelhos
Comemos morangos enquanto vamos andarilhando pelo labirinto. Obsequiamo-nos com o prazer. Percorremos a exposição e murmuramos inconveniências. Planeamos viajar através dos sonhos. Os sonhos que as pessoas têm dos sítios são muitas vezes melhores do que os sítios verdadeiros. Isso está provado. A luz há de ficar boa para tirar fotografias. O resultado de uma boa fotografia pode não ser bonito. O que interessa é que não minta. Os demónios estão a dormir a sesta. Os ventos amainaram. Alguém ri com prazer, ou de prazer. As suas gargalhadas ecoam entre as árvores e fazem ricochete nas paredes. Palavras esquecidas voam ao deus-dará. Organizaram uma festa prandial, atravessando diversas teologias e até códigos morais. Tudo ao mesmo tempo, amplo e trágico. Anticonformista. Tudo cheio de detalhes idiossincráticos. Tudo oscilando entre o mistério e a comédia. Atravessando a maldade como se ela fosse ar comprimido. Recordo a argúcia mordaz e o surrealismo anterior das Almas Mortas de Nikolai Gógol e O Mestre e Margarita de Mikhaíl Bulgákov. Tudo implacavelmente divertido. Somos todos iguais quando observados contra a luz. Somos silhuetas. Deuses e demónios. Vivos e mortos. Ricos e mendigos. Anjos do bem e anjos do mal. Dirijo o meu olhar na direção dos ruídos e das sombras. No lado oposto reina o silêncio. E mais sombras. De um lado as causas perversas. Do outro, as meritórias. Nada dura para sempre, diz o Buda sentado no meio da sala. O dom supremo de Deus é a violência, habituou-se a ela desde o Antigo Testamento. Depois da quietude surge a ausência. Tudo devidamente organizado pelos anjos do silêncio, que se fartam de berrar mas ninguém os ouve. Tudo perde sentido na orla do universo. Nos dias mais tristes só resta o medo. Periquitos e pardais voam das árvores para pousarem nas gárgulas da catedral. O problema dos novos anjos é andarem em má companhia. A metafísica de Deus é truque de ilusionista. Um canto monótono como as ladainhas. As igrejas estão cheias de criaturas feitas de sombras. São filhas do nevoeiro. Para pouco mais servem do que para tombarem de joelhos sobre as lajes frias. As pessoas da Santíssima Trindade são três sussurros. A sua luz traz sempre mais perguntas sem resposta. Os fantasmas receiam outros fantasmas, assim como as pessoas receiam outras pessoas. Todos temos medo uns dos outros. E também do vazio. Infinito. Caras antigas começam a falar comigo, reconheço-as mas não as sei identificar. Pronunciam palavras a velocidades diferentes. Falam, mas não as entendo. Utilizam línguas que se atropelam. Umas gritam. Outras suspiram. As restantes choram. Sentem a invisível culpa da gravidade. Os sussurros atravessam as mentes e o tempo. Chocam de frente contra a imprecisão. Alguns respiram sombras e ouvem música de Bach. As forças mais poderosas são invisíveis. A eletricidade, o vento, o amor. Somos vestígios microscópicos dentro da gigantesca imensidão do espaço. Eus e tus infinitamente pequenos. Vejo buracos que escondem fontes de luz. Luz a incidir no ângulo certo. A luz é um conjunto de espelhos. Quando necessito de respostas abro mais um livro e fico ainda mais cheio de perguntas. Algumas palavras resumem a sabedoria de milénios. Não sei se sou eu que procuro as perguntas se são elas que me procuram a mim. Não sei as respostas, mas finjo saber. É a vida. Coitadas das sombras que vivem dentro dos espelhos.