Poema Infinito (711): Os dias fatiados
A vida dos outros tinha uma dinâmica própria. A minha parecia que não. Nas noites de vento e chuvosas, as cordas de secar a roupa batiam no zinco da parede e produziam uma cadência musical inexpressiva e assintomática. Nessas noites, deitado na minha cama, debaixo de cobertores mais pesados que quentes, ouvia outros barulhos que não me davam sossego. Éramos jovens e pouco sabíamos. As surpresas eram raras. E as que surgiam, na sua maior parte, não eram lá muito agradáveis. Os dias eram fatiados, cheios de buracos, túneis, caminhos e portões. E lenha para pitar. Estavam sempre fora das histórias que ouvíamos contar. Nos montes, fruto da minha imaginação, os duendes escavavam minas e faziam circular a água pelos regos que serviam para regar o milho e as batatas. Ou os feijões, as cebolas e os tomates. Eram os obreiros dos jericós da aldeia. A escola era uma tribo caótica onde se sofria muito para aprender. Eu tinha dentro da cabeça muitos super-heróis. E nenhum deles era parecido com o meu professor. Copiava das revistas os desenhos mais expressivos. E escrevia pequenos textos incongruentes, mas já ligeiramente hiperbólicos, desiludidos e tristes. Ou desalmados e carentes de fé, esperança e caridade, como pregava o senhor abade. Queria ganhar tempo mas a minha mãe dizia que o andava a perder. A minha mãe nunca me percebeu lá muito bem. Nem eu a ela, verdade seja dita. Sei que gostava de ir para os montes gritar como as lobas. Ou que se sentia vingada quando isso afirmava. Não sei de onde lhe vinha tanta raiva. Nem para o que lhe servia. Por vezes rebentava num choro compulsivo cheio de desculpas e contradições. O meu pai fumava e tudo lhe desculpava. O que sei é que aquela dor era mesmo dela. À sua maneira, tanto o pai como a mãe eram os meus super-heróis de proximidade. A mãe era a heroína da força de vontade. E, por vezes, do desalento. E do chinelo corretivo. O pai era o herói da tolerância e da indiferença. Pouco tinha e de pouco necessitava. Esse superpoder irritava muito a minha mãe. Estes superpoderes eram tão óbvios que eu só mais tarde é que os reconheci. Nos verões da minha infância, a mãe usava um vestido de manga cavada, cor-de-rosa, com malmequeres e gipsófilas estampadas, usava ósculos tipo vespa, sapatos altos e o pai substituía a farda cinzenta por um fato azul impecavelmente engomado, que o fazia parecer o Alan Delon em férias na província. A mim enfarpelavam-me com um conjunto de camisa e calções amarelos, sapatos de verniz. Fazia parte da tradição irmos a Chaves tirar a fotografia de família. A minha irmã Rosa também nos acompanhava, vestida de branco, com a sua cara zangada. A falta de entusiasmo tinha a sua razão de ser. Lembro-me muito bem das flores azuis que havia no meio do feno, de me sentar à sombra, junto ao riacho, de reparar em tudo o que se passava na copa das árvores. Pássaros a discutirem uns com os outros e os outros animais a cuidarem da sua vida sem se importarem com mais nada. O que me deixava pasmado. Eu tentava perceber a maneira correta de fazer as coisas. Era a minha forma de agradar aos meus pais e à família mais próxima. E também fazia as minhas orações que cada vez mais tinham um sabor a bolachas de água e sal e a óleo de fígado da bacalhau. Mas tudo o que não mata, engorda. Não é, mãe?