Poema Infinito (719): Desfocagem
As velhas fotografias estão cada vez mais desbotadas. É impossível fazer parar este processo. Desaparecem a olhos vistos, lentamente, com um círculo de luz à volta que as faz ficar brancas. Parecem uma tarde nevada onde deixou de haver neve. Lá fora as mudanças são agora mais rápidas. Existe uma nova tristeza local. Provavelmente mais colorida. Mas mais melancólica. Tudo é efémero. É triste ver as ruínas e tentar reconstruir o aspeto de outrora. Os olhos encontram algum prazer na decomposição e no abandono. As ruínas também possuem a sua beleza. Uma espécie de beleza não premeditada. A história mastiga as memórias. Alimenta-se delas. Os testemunhos acumulados excitam a nossa ânsia. Tenho medo de esquecer. Tenho medo de ter medo. Uma exortação do Deuteronómio: “Guarda-te para que não te esqueças do Senhor…” Aí está a memória a exigir a estrita e longínqua observância das regras. Não devemos eliminar o insignificante pois acabamos por ficar sem o significante e sem o seu significado. O Nilo volta sempre a inundar as suas margens, mas o seu significado perdeu-se. Foi o conhecimento que descobriu os buracos negros, mas não foi ele que os criou. As almas desassossegadas não conseguem despedir-se deste mundo. Muitas delas, demoraram-se na contemplação de alguma coisa viva de que não se tinham apercebido. A casualidade cria os seus próprios embaraços. O voo das aves transforma-se em sombra e depois desaparece. A fome de infinito pode estar ferida, mas não vai morrer. Há pessoas que mudam tanto que deixam de se parecerem consigo próprias. Acabam por deixar de se identificarem. Apenas são reconhecidas pelo nome. São como camuflagem de sonhos dos outros. Mataram definitivamente a autoironia. Delas irradia calor e frio. O aturdimento colidiu com as semelhanças e estas com as perceções. A inércia nasceu com as confissões e as combustões espontâneas. As histórias das vítimas são sempre emblemáticas. As setas que se encontram nos seus caminhos apontam sempre para o seu destino. Incerto. Destino comum. Morte comum. Cada ser humano transporta dentro de si uma promessa ainda por cumprir. São documentos mortais que necessitam de ser interpretados. Devemos afastar os filtros para ficarmos com a cor pura. Noé acasalou com as filhas de Loth. O pecado original ainda não deixou de se multiplicar. A lógica de tudo aquilo que é paradigmático tem inspiração divina. O Holocausto. O Gulag. Na realidade tudo é diferente. No entanto, ainda se continuam a acender luzes nas árvores de Natal. Os milagres continuam. As fotografias estão cada vez mais desbotadas. E a música de Bach a tentar colocar verniz para conservar os guaches de Charlotte Salomon. E as renas a fazerem tilintar os seus guizos atómicos. A boa gente tem natureza dupla. Toda a narração tem um destinatário. Deus não explicita nada, mas insinua tudo. Deus só existe porque é nomeado. A sua divindade não é diferente. É indiferente. Os livros sagrados, mais do que romances com mil e um personagens, são fábulas onde os animais estão disfarçados de seres humanos sempre a ensinar-nos moral e como nos devemos comportar. Não admira, pois, que os anjos sejam assexuados e, na sua grande maioria, suicidas. As trevas adensam-se. Tudo o que é natural é sagrado. E lá nos vamos preservando na incompreensão e na desfocagem. A cápsula de luz continua a desbotar as velhas fotografias. É impossível fazer parar o processo.