Poema Infinito (726): Os lugares geográficos da paixão
Estou dentro dos dias mais frios, junto ao mar de dezembro, a olhar para o Natal à procura das pequenas histórias, a reconhecer na neve do Larouco os passos da Senhora Mãe, enquanto na mesa da taberna se bebem copos de vinho e se trincam pedaços de pão e presunto. O tempo constrói-se com sílabas e destrói-se com células. É estranho estar a escrever à tarde, sentado no velho escano junto à lareira. Isto desde manhãzinha. Existe um lado de engano dentro desta poesia. Daqui todos os ângulos parecem iguais. E o pátio da escola um quadrado perfeito. O Sol nasce sempre do mesmo lado, estendendo-se pelos atalhos, inundando de luz os lameiros, aquecendo as vacas, benzendo as igrejas. Olho para a sua luz refletida pelo rio com os olhos em silêncio. Ainda conservo nos bolsos da velha samarra migalhas de amor. Ai daqueles que domesticam pensamentos libertários, criticam as cigarras e dizem adorar as formigas! Ai deles! As certezas do mundo costumam transformar-se em desilusão. O que nos salva é a eterna procura da fantasia. Tanto os sorrisos como o choro nascem sempre perto de casa, quando se procura sentido para as coisas, quando se fala com a luz e se dão os primeiros beijos. Alguém nos sopra para os ouvidos um pedaço de fé. E nós de joelhos, inseguros. Esse alguém também nos diz que algumas ideias são enganos. Nós rezamos, arrependidos dos pecados, pelos espaços intermédios entre as rimas e os ritmos. Outro sopro de fé. É necessário estar a salvo dos corpos. É bom evitar os sítios geográficos da paixão. Ninguém sabe como dela regressar. Quais os caminhos que nos podem fazer sair do labirinto. Espero. Portanto. Espero. Desespero. Portanto. Nem sempre há rios entre nós e o abismo. O vento desceu a serra. A neve enganou o dia com a sua brancura. Agora levo mais tempo a amar as coisas, a seguir o voo das aves, a decorar os rostos das pessoas, a perceber as amizades, a afiar o gume da minha navalha com que como a carne cozida e o pão centeio no dia de São Sebastião, na Vila Grande, na mesinha comunitária decorada com uma toalha alva de linho. Olho lá para o fundo da igreja, para o lado direito do padre que reza a missa, e estudo o latim das sombras e o assombro das almas que ainda não conseguem descansar em paz. Cismo com o Deus de Saramago. Rio-me para não chorar. Por vezes sinto que consigo olhar para os seres humanos com os olhos de Blimunda. Escrever poesia tem destas idiotices. Permite-nos pensar que temos um dom. Na lareira ardem as cores, o azul suave, o castanho quente, o verde atrapalhado, o amarelo tórrido, o vermelho sofredor. Lá fora, a luz líquida atravessa a neve que começa a derreter. O branco transformou-se num labirinto para os nossos os olhos. O mundo parece estar a ficar transparente. Tento entender a memória antes que ela mude de sentido. Tento esboçar sorrisos e articular gestos conhecidos para não a assustar. Tenho frio. Penso no sol. Em linhas de voo. Em algo eterno. A rotina é um ritual. Os desafios ainda doem. O corpo imóvel. Do pai. O corpo imóvel. Da mãe. Um adeus. Outro adeus. E logo outro. E ainda outro. Isto agora é sempre a somar. O que resulta na mais absurda das subtrações. A longa chama da solidão arde, como se fosse eterna. Algo me diz que está na altura de terminar este poema.