Poema Infinito (727): A noite começa a soprar...
A noite começa a soprar o vento. O silêncio é denso. A poeira vai cobrindo as ruas e o tempo que por elas passa. Sente-se a desintegração das partículas flutuantes. Daqui veem-se as silhuetas das pessoas mexendo-se neste aquário de ar. A tristeza atravessa só agora a rua para não morrer de vergonha. A Bela vai por um lado. O Monstro segue pelo outro. Neste poema não se encontram. Nem no seguinte. E, no terceiro, veremos. Daqui podemos observar o corajoso e arrojado capitão Serra, que manda embarcar os outros e fica ele em terra. Vamos tentar de outra maneira. A noite está acalorada. Não sopra a mais leve aragem. A poeira está estática. Visitas demasiado longas atrapalham-nos a paciência e plissam-nos a vontade sexual. Passa o tempo e ninguém nos explica a morte. O que não tem explicação, explicado está. Passa tanto tempo sobre o pouco tempo que os princípios científicos vão às malvas. Paco de Lucia cruza a perna e toca a sua viola. Tanta mestria apaixona e enfastia. Vou tentar de novo. Palmas palminhas palmas. Ritmo. Guitarradas. Flamenco e ai e olé. Esgota-se esta música que nos esgota. Ramos de flores moles enfeitam a festa. E nós todos despenteados. Ou descompostos. Ou ambas as coisas. A pingarmos lamentos ou discursos esquecidos. As inércias aí estão a ponto de se iniciarem. A verdade não se expressa nos rostos. A verdade não é pura. Apenas a mentira costuma ser assim apresentada. Não vale a pena enterrar a infelicidade, ela nasce por aí como erva boa. E tudo volta ao princípio. O café a fumegar. O amor a suspirar. E todos a irem para a igreja numa atitude de urgência. Todos a dirigirem-se para a inevitabilidade da morte. Até os prémios Nobel ficam com a dicção afetada pela distinção e pelas próteses dentárias. E pela miopia dos eleitos do júri e pela dos laureados. Depois dos bombardeamentos catastróficos seguem-se as epidemias bíblicas. Ninguém suporta a densidade de narrativas extravagantes, tão enxutas de ênfases, tão empoeiradas de poalha de rosas brancas e de cravos vermelhos e de lírios roxos. E de abraços frágeis. Ninguém suporta essas náuseas. Geniais. E os borrachos a olharem o infinito. E os génios, da lâmpada, apagados e melancólicos, a empoeirarem-se de solidão. Humor, a quanto obrigas. Tantas são as evocações, que já não há santos para acudirem a tanta vacuidade. Monólitos a invadirem as praças. Vamos tentar uma terceira e última vez. O vento das cinco horas da tarde leva para longe as oradoras absortas na sua mensagem mumificada pela poeira do tempo. As raparigas púberes ouvem os lamentos dessas mulheres vestidas de negro. Outrora desfilaram por aqui percorrendo as ruas a menear provocadoramente as ancas e a espalharem desprezo pela moral e pelos costumes. Putas e santas são cara e coroa da mesma moeda. As pecadoras e os pecados começam a levitar. E os pasmados dos homens a vê-las subir aos céus. E o poeta Mezena a discursar no enterro da Rainha Isabel – a tal que cantava rancheras: “Já não há valquírias como tu, querida amiga”. E o Caetano Veloso a cantar “cucurucu paloma”. E uma criança a desenhar patos pequeninos. E o espírito santo a transformar-se em pomba abençoado por Fernando Pessoa com as saias da mãe do Alberto Caeiro vestidas. Sim, Ricardo Reis, este é um carnaval alucinante. Ou um chá no meio do deserto. Alguém bate à porta. “Entra”, diz João Villaret: “Tocam os sinos na torre da igreja…”