Poema Infinito (728): As peónias preparam-se para...
Os olhos estão cheios de mistérios, depositando confiança nas árvores que nos rodeiam. São criaturas densas e imóveis. Frágeis. Dependendo da vontade humana. Do ponto de vista da natureza, não há seres úteis ou inúteis. Apenas os seres humanos aplicam essa estúpida distinção. Um rouxinol fechado dentro de uma gaiola enfurece o cosmos. A avó anda meia curvada, com a mão apoiada nas cruzes e com um ar dorido. Suspira. Senta-se. Volta a suspirar. Levanta-se e vai sentar-se um pouco mais à frente, para aproveitar uma nesga de sol. As peónias preparam-se para florir. O mundo está agora coberto por um fino véu dourado. Alguém destruiu os nossos lugares de infância onde passávamos as férias grandes, os bancos de jardim de madeira pintados de branco, onde descobrimos os primeiros amores. Agora é tudo um pouco mais doloroso. Era ali que o senhor José se sentava, tirava uns pedaços de tabaco de um saquinho de plástico e começava a enrolar um cigarro. A luz do mês de junho era de uma bonita tonalidade azul. Ali estávamos sentados no pomar sob a velha macieira, onde as maçãs já amadureciam. O pomar sussurrava por cima de nós, exalando perfume. Perdíamos a noção do tempo. Nós a falarmos como faunos do bosque. Meio pessoas, meio animais. A avó tinha uma voz fina e vibrante. A noite em nosso redor tilintava. A avó parecia estar a rezar. Perguntou-me se eu era religioso. Respondi-lhe que sim, que era ateu. Ela ficou a olhar para mim como se não tivesse compreendido a resposta. E disse que alguém nos andava a comer os morangos. Respondi-lhe que Deus, o nosso, não devia ser. Ela tornou a olhar para mim como se não tivesse compreendido. É estranho ver como a noite apaga todas as cores. A voz da avó soa agora na minha memória como se viesse de outra dimensão, onde as árvores têm milhares de anos e os animais se movimentam em câmara lenta, à margem do tempo. A avó aprendeu a fazer sozinha as coisas difíceis. A sua imagem continua a esbater-se, a dissipar-se, até dela ficarem os seus olhos azuis, a sua grande trança grisalha, suspensa no ar, paradoxal. Tudo passa. Deus sabe disso desde o início da criação. E não o lamenta. Depois da chuva do verão ouve-se a erva a crescer como um murmúrio, as heras a treparem pelas paredes, o micélio a expandir-se, debaixo dos nossos pés, para eclodir, e tudo a adquirir profundidade. Os morangos parecem estar esgotados. E entristecidos. Os insetos começam a transformar-se em húmus e depois em musgo. As sombras iniciaram uma dança à espera do lobo mau. São agora os lobos que nos dão lições de justiça básica. Nós temos uma visão do mundo, mas os animais possuem um sentido do mundo. Uma espécie de sonho incompleto espalhou-se pela casa. A avó e a mãe envergam vestidos às flores e pegam nas malinhas de mão de forma nervosa. Estão prontas para ir à missa. É domingo. Tentei falar-lhes mas fiquei com a voz embargada. Oiço ruídos de coisas. E sussurros crescentes. Acordo. Uma neblina delicada eleva-se sobre os muros e as árvores e converte-se em orvalho. A ocorrência de infelicidades continua a estar acima da média. A configuração das plantas na floresta diz-nos que há fortes razões para isso. A mãe e a avó, saídas do meu sonho, regressaram da missa e foram sentar-se junto à lareira. Sorriem para mim como quando eu era pequeno. Tudo aquilo que somos capazes de imaginar faz parte da nossa verdade. Os átomos da felicidade aparecem e desaparecem com uma velocidade estonteante. Elas olham fixamente para mim. Não consigo interpretar esse olhar.