Poema Infinito (731): O canto atrapalhado dos melros
As pessoas daqui são sérias e indiferentes. Estão imersas numa mudez feita com uma carapaça de dor. A sua pele parece madeira seca e rachada. Os seus sorrisos fazem lembrar arame farpado ferrugento. Um manto de nuvens, pesado e profundo, paira sobre a aldeia. O sol clareia lá ao longe, perto da nascente do rio. Carvalhos velhos, cheios de geada, erguem-se acima dos lameiros que já foram um pasto comunitário. Perto de uma vala de água voam dois pássaros negros e brilhantes como carvão. Abrem as asas e levantam voo, desenhando uma curva apertada. Entretanto, voltam a pousar. O seu canto ecoa até que o vento o leva para longe dali. O vento sopra, cortante. As cores estão esbatidas. A luz parece não ter força para as animar. É de manhã, mas parece que o lusco-fusco está para chegar. Nos pequenos lagos dos caminhos, as rãs e as relas esperam um sinal para iniciarem a reprodução da espécie. No cimo dos montes, as hélices brancas das turbinas eólicas giram como se fossem lentas máquinas vivas. Atravesso os campos para chegar ao leito do rio. Nalguns pontos, a manta de vegetação foi arrancada. Os javalis revolveram-na. O pipilar de uma calhandra-real anuncia a primavera. Olhando para as terras em redor, a nova estação do ano parece quase implausível. Oiço o gorgolejar da água. Entro na floresta. Sinto-me a mergulhar no silêncio desconhecido do seu interior. O chão tem ainda os restos de folhagem murcha do ano anterior. Deito-me a descansar. Algumas plantas estão próximas de se abrirem em flor. Um golpe de vento passa pela copa das árvores. Uma raposa foge para longe. O céu clareia. O círculo pálido do Sol brilha por entre o teto de nuvens. Os pássaros fazem mais ruído. Tagarelam as pegas. Piam os tentilhões. Cantam atrapalhados os melros. E, um pouco mais abaixo, escuta-se a melodia melancólica dos pintarroxos. A paisagem ainda parece a mesma da minha meninice. Continua tranquila e ordenada. As poças de água refletem as cores e as formas de tudo o que as rodeia. No solo mais pobre, as azedas, derreadas pelas chuvas dos últimos dias, formam madeixas. O rio segue silenciosamente o seu curso desenhado pelo tempo. Tudo parece remoto. As áreas de cultivo. Os lameiros do gado. No céu encapelam-se nuvens que parecem castelos de algodão. Sinto-me a passear pelo início da criação. Após a monocromia das últimas horas, o voo das aves, à luz repentina do Sol, enche o mundo de cores exóticas. Depois de muito caminhar, chego de novo à aldeia. Nalgumas das casas habitadas, veem-se cortinas penduradas nas janelas, carros à entrada, galinhas a debicarem o chão. Tudo parece anacrónico, negligenciado. A igreja conserva-se no vácuo. O Sol continua a brilhar, mas ainda não aquece. Penso no calor da lareira. Junto a algumas casas crescem heras e urtigas delicadas, de penugem clara. Uma neblina leitosa paira sobre o povoado. A norte, um trator ara a terra seguido por uma nuvem de pó. No céu azul, cirros macios velam os aviões que deixam atrás de si rastos evanescentes de condensação. Milhafres volteiam lá no alto. Sobem, descem, guinam e giram. A terra parece respirar em fôlegos suaves e longos. Regressa um silêncio dominical. O telemóvel tem outra vez rede. Marco um número. Um cão começa a ladrar. Adultos arrastam atrás de si uma criança pequena ao longo do meu campo de visão. Quando o táxi aparece, começam a cair flocos de neve.