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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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17
Out24

Poema Infinito (732): O cato

João Madureira

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Olho para o cato em contraluz e reparo que está cheio de pó. Provavelmente precisa de ser regado. Nunca sei quando foi a última vez que o reguei. Tenho medo de o afogar com água a mais. Não sei quem me deu o cato. Provavelmente foi um gesto irónico. Olho para os meus pés descalços. Continuam brancos e magros, como sempre foram. O seu peito é alto. O que incomoda quando tenho de calçar algumas botas ou sapatos mais apertados. Agora são mais nítidas as veias. Reparo nos pormenores da casa abandonada, nas peças velhas e estragadas. Reparo nos buracos do caruncho. Olho lá para fora, no sentido do velho caminho de areia que vai dar ao rio. O pó dança na luz. A velha mesa, vista daqui, parece impossível. Era ali que ceávamos quando o avô ainda era vivo. Agora olho para a água esverdeada do rio, a mover-se de um lado para o outro. Os patos mexem com o bico na lama e grasnam. Penso nos movimentos que vou fazer, mas em câmara lenta. É estranho pensar em câmara lenta. Parece que estou num dos filmes de Godard, que eu tanto detestava, mas dizia gostar. Começo a urinar no mesmo sítio onde o fazia em criança para ver onde chegava com o jato. Rio-me. O jato ainda atingiu as urtigas. Mas parou antes de chegar às sanguinhas. Das sebes espinhosas dos muros pendem amoras silvestres. Ainda verdes. Cabos de alta tensão atravessam o vale. E depois os montes. As searas, ainda verdes, balouçam ao vento. Tudo parece em paz. Sinto o sol na nuca e nas costas. Mosquitos esvoaçam à minha volta. Enxoto-os. É inútil. Não consigo evitar um bocejo. Entro no carro para me ir embora. Atravesso a pequena povoação. Tudo parece diferente visto aqui de dentro. A estrada está agora alcatroada. Observo as pessoas que passam lá fora. Uma velha de bata preta, com as mãos fincadas nas ancas, observa o seu marido que teima em regar o jardim. Um jovem casal empurra um carrinho de bebé por um caminho estreito. Dois rapazes pedalam nas suas bicicletas e fazem curvas sem porem as mãos no guiador. Gritam. Fecho momentaneamente os olhos e sinto o carro vibrar. Depois de abrir os olhos reparo nos insetos esmagados no para-brisas. Abro o vidro da porta e ponho o cotovelo de fora. A turbulência é agradável. Ou, pelo menos, tento pensar que sim. Lá fora passam os campos, as florestas, os postes de eletricidade e dos telefones, as ruínas de uma serração, barracas de plástico onde se cultivam cravos vermelhos e outras flores agora inúteis e sem cheiro. Antes fossem de plástico. Lá mais ao fundo, num lameiro murado, uma criança vestida como um jóquei, palra, agita as mãos e monta num pónei. Chego a casa e sento-me. Espreito lá para longe, pela fresta da janela. Um grupo de crianças atira uma bola para um lado. E para o outro. Registo tudo em câmara lenta. Lembro-me outra vez de Godard. E que nunca o consegui suportar. Não sei como hei de registar a gritaria das crianças. As memórias são cada vez mais finas. Os seus cortes são cada vez mais fundos. Algumas são apenas gotas de orvalho que se vão evaporar com o sol da manhã. O tempo zune regularmente. Olho para os catos. Estes são mais elaborados. Estão sob um naperon que a mãe bordou quando estava grávida da Júlia e não conseguia adormecer. O candeeiro em cima da mesa lança um círculo de luz brilhante sobre o tampo da mesa. E sobre o naperon. Faço um chá de camomila. Não sei porquê. Deixo-o ali a fumegar na chávena. Abro o frigorífico. Pego numa cerveja fresca. Abro-a. Também.

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