Poema Infinito (737): O Poema das perguntas
Afinal de quem eram as palavras que O. M. ouvia? Por que razão tinha uma reação excessiva à realidade? De quem era aquela linguagem? Porque estalava ele os dedos quando o levavam pelos corredores da prisão interna para os interrogatórios noturnos? Porque piscava os olhos para os outros, sabendo que esse gesto simbólico significava “fuzilar”? Porque trocava ocasionalmente comentários amedrontados, ele que era a coragem em pessoa? Qual a razão de se deixar afetar pelos discursos solenes do investigador sobre “crime e castigo”? Qual a vocação essencial para se ser carcereiro ou se ser especializado em trabalho de interrogatório e tortura durante a noite? Por que razão é que as vozes que O.M. julgava ouvir eram masculinas e grosseiras? Por que razão os presos políticos eram constantemente ameaçados com os “tormentos da consciência”? Por que razão os amigos e conhecidos de O. M. eram presos e incriminados, mesmo não tendo havido denúncias? Qual o motivo por que Anna Andréevna escreveu os versos: “Lá, atrás do arame farpado / No coração da densa taiga / a minha sombra é levada a interrogatório…”? Qual a razão de em determinadas circunstâncias não ser possível exibir qualidades morais elevadas? Qual a razão de O. M. ter uma excitabilidade excessiva? Será que tinha uma predisposição para as doenças mentais? Porque é que as pessoas agem contra a sua consciência? Será que um poema, como diz O. M., começa quando os nossos ouvidos captam um som insistente, primeiro sem forma definida e depois formando uma frase musical precisa, mas ainda sem palavras? Por que razão O. M. tentava livrar-se desse som abanando a cabeça como se o pudesse deitar fora como uma gota de água que nos entra no ouvido quando estamos no duche? Qual o motivo porque O. M. pensava que se o poema não se desprendesse era devido ao facto de alguma coisa estar escondida dentro dele e por isso o trabalho não estar concluído? A sua voz interna calava-se? Por que razão todos os primeiros ouvintes dos poemas de O. M. acabaram por ter um destino trágico, tendo passado pelas prisões e pelos campos de concentração? Por que razão se executavam poetas na URSS? Seria porque o amor à poesia exigia certas qualidades mentais que no país de O. M. condenava as pessoas à morte, ou, na melhor das hipóteses, ao exílio? Por que razão estranha apenas os tradutores eram autorizados a viver? Seria pelo facto de o processo de trabalho de tradução ser diretamente oposto ao verdadeiro processo de escrever poemas? Será verdade que a tradução vulgar é um ato de verificação, frio, racional, através do qual se imitam alguns elementos da escrita de poesia? Será que o poeta O. M. sabia disso? Será que Nadejda Mandelstam, contra toda a esperança, disse isso ao poeta que ouvia vozes sem saber de onde vinham? Por que razão ele e Nadejda estiveram juntos na prisão a reunir cuidadosamente as películas de realidade que iam sobrando do que se passou na Lubianka durante a investigação? Por que razão O. M. cortou as veias com uma lâmina Gillette que tinha escondida na sola dos sapatos? Por que razão o canalha Khristoforych disse a O. M. que para um poeta o sentimento de medo é útil, que o medo contribui para fazer surgir a poesia? Por que razão também o investigador foi fuzilado? Será possível discutir o impulso para imaginar poemas escritos num estado de raiva e indignação? Será que Óssip Mandelstam morreu? Será que Nadejda Mandelstam continua a procurá-lo no meio da taiga, em valas comuns, entre deuses e demónios? Para onde foi todo aquele medo? Por que razão aquela revolução fez correr dilúvios de sangue perante a cegueira de todos, sobretudo dos intelectuais? Será que aquele medo ainda anda por aí?