Poema Infinito (738): O rigor
O rigor. O rigor do vento abre brechas nas imagens dos corpos. A sombra encosta-se à brancura da parede. O rigor. O rigor da luz atrapalha os olhares. Fecho os olhos pelo excesso de luminosidade. Durmo em cima de pretextos. Lembro-me do teu corpo. Dos teus lábios. Do rigor. Do rigor vermelho dos teus lábios. Do teu sexo. Do rigor. Do rigor das palavras. Do rigor. Do rigor dos versos. Do rigor. Do rigor dos comentários. Dos contextos. Lembro-me de Amarcord. Da sua falta de rigor. Da música do Nino Rota. Lembro-me do lugar onde vem morrer a luz dos astros. Dos gritos rápidos dos amores antigos. Da ânsia. Do rigor. Do rigor da ânsia. Do lento crepitar da lenha na fogueira. Do cheiro húmido do litoral. Das almas imóveis. Da alegria a arrastar-se para lá do Natal até chegar ao Ano Novo. Do rigor. Do rigor de Deus. Do rigor do frio. Do rigor rigoroso da gramática dos Lusíadas nas aulas de português no Liceu. Eu a aproximar-me mais da compreensão total dos corpos do que do extensíssimo poema de Camões. Ó chatice imensa! Ó rigor indeciso e transitório! E o senhor padre a ordenar a substância nominativa da hóstia (corpo de deus) e do vinho (sangue de cristo). Os presságios perseguiam-nos. Lembro-me do estímulo agoirento dos sonhos. E das rezas. E dos defumadouros. E das benzeduras. E dos beijos mordidos pelo pecado. E do pecado mordido pelos beijos. E pelo rigor inquisitivo da confissão. E do rigor. Do rigor de nos ajoelharmos na laje fria da igreja. Do rigor frio da água-benta. Da imprecisão das vigílias. Da masturbação. Da estranheza frontal da primeira ejaculação. Ai o rigor! O rigor da virgindade. O rigor do pecado carnal. Os lábios a beijarem uma vagina. O rigor. O rigor da fronteira do pecado. O rigor. O rigor da divindade. O rigor. O rigor avesso dos preservativos. A abjuração. O estigma. O seu rigor. O rigor da lucidez. O voo das palavras. O rigor do poema. O rigor dos poemas breves. O rigor dos poemas longos. O rigor. O rigor da rigorosa arte de escrever sobre o rigor. A solidão. Os axiomas. A estupidez rigorosa dos axiomas. O rigor das ruínas. O rigor da morte. O rigor das horas a preto e branco. O rigor do rigor mortis do avô, da avó, do pai, da mãe, dos tios, dos primos. A escandalosa falta de rigor das metáforas. Da realidade. Da lógica. Da luz dos livros. Dos livros da luz. Dos objetos que se liquefazem. Da música. Do silêncio. Da inquietação. Da água. Dos enigmas. E a poesia a entrar pelos filmes do Fellini dentro. E pelos do Kusturika. E a dinamitar os filmes do Manoel de Oliveira. E a fazer implodir os filmes de Godard. E a sua intensíssima falta de rigor. E eu a passar por cima do rigor da religião, da educação, da política, do fascismo e a escrever sobre mares e marinheiros e cidades longínquas e abismos e sonhos. E a passear em volta da poesia japonesa sem ter coragem para lhe tocar. A olhar para o rigor da sua construção e a pensar que aquele rigor, afinal, não tem rigor nenhum. Provavelmente é necessário perguntar pela perfeição do silêncio. Não pelo seu rigor. Não pelo rigor da poesia que se escreve sem rigor. Aprendi então a embaraçar-me nas palavras e a desembaraçar-me dos silêncios. Dessa forma faço poesia. Aprendi que não devemos desenhar fronteiras entre a evidência e a surpresa. Afinal, que espécie de deus é este que nos assiste? Que falta de rigor o seu!