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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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05
Dez24

Poema Infinito (739): A velocidade da chuva

João Madureira

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Dói-me o esquecimento e dói-me o esquecer. As intenções, sobretudo as boas, são as coisas mais lisas do mundo. Todos escorregamos quando andamos em cima delas. O amor dos animais é gratuito. Valha-nos ao menos isso. Dentro do abismo, ouvem-se muinheiras. Devo estar a atravessar a fronteira, que agora parece invisível. Ouvem-se as flautas, os pandeiros e a gaita-de-foles. Os sons misturam-se com a memória da humilhação. As mulheres a gritarem de susto. As crianças a chorarem. E os homens a teimarem em beber sempre mais um copo. De vinho. De cerveja. De cidra. De aguardente. Esta “esmorga” é muito triste. Quem os ajudará na vingança? Quem? O desejo parece um saguim ao saltinhos. É difícil estar suspenso entre dois nadas. E o livro da poesia completa de Guerra Junqueiro a cair aos pedaços. O padre eterno a morrer aos bocados. Lá fora passam homens barbudos, de casacos comprimidos, filósofos talmudistas, vendedores ambulantes dos seus próprios aforismos. Persegue-os um anjo prisional que foi queimado durante a Revolução. Uma nave antiga navega a toda a vela pelos céus fora. Ouvem-se admiráveis vozes infantis. Tudo parece abstrato: Rosseau, os rapazes amestrados, os ideais filosóficos do século XVIII. Olha para mim um colecionador de pregos. Eu escondo atrás das costas um martelo. Melhor seria ter um violino. Rostos verdes em agosto. Não é normal. Mais um mistério para desvendar. Sinto o cheiro penetrante das pequenas coisas. Do vinho. Dos sorrisos. Do tempo dos verbos. Dos olhares das mulheres bonitas. Das plantas silvestres. Dos gestos. Dos sorrisos. Um poeta amigo tenta calcular a velocidade da chuva. A verdade está a esgotar-se. A paciência parece uma hélice. Sorrio no escuro, para ninguém me tomar por louco. Descalço a virtude e sento-me na borda do passeio. Gostaria de escrever coisas divertidas. Estamos já fartos de catástrofes e de pequenas e grandes tristezas. Estive numa reunião de poetas, logo depois do crepúsculo transmontano, e reparei que todos falavam baixo, bebiam tequila à maneira mexicana e recitavam poesia aos berros. Pareciam todos o Ary dos Santos, mas mais para o magro. Dizem que fugiram à chuva, a que um deles, lá mais um pouco atrás, neste poema, tentava calcular a velocidade. Muitos dos poetas parecem monges artificiais. Alimentam-se de milho transgénico e de rúcula e de canónigos. Parecem enjoados. Vivem na intersecção entre a morte e o poema. As suas palavras não lhes são fiéis. Eles bem as gritam, mas elas fogem-lhes durante a noite para outros livros. E eles, como sonâmbulos, dão voltas em torno dos seus equívocos. Dormem à beira do abismo. A poesia já não os emociona, por isso a gritam como se os que a escutam fossem surdos. Ou parvos. As suas alegorias sofrem de uma imaturidade premeditada. Vejo-os a aparecer e desaparecer atrás da tal cortina de chuva a que o tal poeta, que ficou lá atrás no poema, continua a tentar medir a velocidade. Alguém recita versos de amor em latim. Também eu agora sinto um vazio depois do orgasmo. Concentro-me para escutar a chuva a que o poeta tardio continua a querer medir a velocidade. As nuvens estão cada vez mais agudas. Sinto-as pregadas às minhas retinas. Abres então as tuas pálpebras. Eu ainda continuo aqui apesar de ter dado a volta ao mundo sem sair do teu lado.

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