Poema Infinito (742): Alice cheira o medo
Alice comeu ontem muito doce de framboesa. O que não é comum. A desculpa foi que estava doente. Deram-lhe algumas pequenas colheres de remédio. Santo. A parte santa tinha fiapos brancos. E tinha também sabor a hóstia. O Coelho Branco fartou-se de dar saltos. Nervoso. A Alice descobriu que misturar doce de framboesa com pão ázimo e remédio não ajuda na entropia. As misturas nem sempre são felizes. A felicidade nem sempre se baseia na entropia. A entropia nem sempre vem nos livros. Nos livros, as mães e as avós e as tias e as primas e até algumas criadas costumam cantar, para a doença aliviar, as pombinhas da Catrina. Uma é sempre de alguém. A do meio é tua. E a outra é minha. Ou seja, é da Alice. Já lhe está a descer a febre. Ontem, quando foi a banhos, enjoou na viagem de barco. Foi à vinda. O sol estava forte. Ela constipou-se e ficou fanhosa. Depois veio para o castelo de carroça. Madame B. foi buscá-la e prendeu com laços cor-de-rosa os bandós da menina. Madame B. está um pouco gorda. Molly Bloom está um pouco gorda. Alice está um pouco gorda. A criada portuguesa está um pouco gorda. A criada inglesa está um pouco gorda. A criada angolana está um pouco gorda. Alice pôs-se então de cócoras e começou a brincar com a sua linda boneca de cera de olhos azuis. A madrinha enviou-lha de Paris. Ela gosta de amachucar o seu vestidinho de fustão. E de dar brilho aos sapatinhos de verniz. A boneca não é forte, mas tem boas cores. Depois despe-a e dá-lhe banho. Frisa-lhe os cabelos com papelões e um ferro quente. À moda antiga. O cabelo ficou estranho. A boneca acaba por desfalecer. Diz então à criada inglesa que a meta numa caixa de sapatos e a vá enterrar no cemitério onde estão sepultados os seus antepassados mais antepassados. Durante a noite sonhou com o colégio onde andou até há bem pouco tempo. Quando a camioneta a vinha buscar, nas manhãs de névoa que envolvia tudo. Ela lá ia toda enroupada, com um bibe largo por cima de todas aquelas farpelas. De pasta às costas e com uma lancheira na mão esquerda. O colégio era um edifício pintado de um cor-de-rosa violento. Numa tarde, já um pouco longínqua, a sua mãe foi até ao colégio dizer-lhe que tinha de ir de viagem com um senhor chamado Phileas Fogg. Os corredores frios ficaram ainda mais frios do que já eram. O ar cheirava a desgosto e a náusea. E começou a cheirar a medo. O colégio. As freiras. As outras meninas. E também as criadas. A criada portuguesa. A criada inglesa. A criada angolana. A nova criada francesa. E as horas de recreio. E os baloiços. Até os recantos do recinto desportivo. Tudo a cheirar a medo. As pombas arrulhavam. Alice passou a fingir que comia. E começou a deitar a comida para debaixo da mesa. A que levava à boca enrolava-se-lhe entre a língua e o palato. Era como se fosse uma hóstia. Longe da quentura da mãe, começou a desmembrar as bonecas, a inventar bruxas e amigas de fantasia, que lhe diziam coisas estranhas e badalhocas. Não conseguia dormir. Apenas fechava os olhos para que a deixassem sossegada. Ficou vulnerável e cruel. Passou a estar só, mesmo quando estava acompanhada. Alguém lhe trouxe cogumelos para provar. A partir daí começou a crescer e a mingar, a enfiar-se dentro do seu buraco, a correr atrás do Coelho Branco. A dar pontapés no traseiro de Tweedledee e Tweedledum. Mas sempre que passa no colégio cor-de-rosa violento sobe-lhe sempre uma bola de pão ázimo à garganta. Nem uma lágrima lhe cai dos olhos.