Poema Infinito (753): Pirilaus e pirilampos
Acordávamos estremunhados de manhã, quando já o João Lorde andava a esporear o potro. Afeiçoou-se à violência sobre os animais ainda em criança. O pai andava por África a civilizar pretos. Diziam os outros com palavras de falsa responsabilidade. Ele brincava de tal maneira que trazia sempre os joelhos a sangrar, como se fossem frutos em ferida. Dava trambolhões, de propósito. A mãe, chorosa, ia-lhe buscar álcool, mercurocromo e sulfamidas. E perguntava-lhe se doía. Ele ficava quieto. Mudo. E trincava os dentes. Às vezes, para se pôr à prova, olhava para as feridas, estendia um bocadinho as pernas para senti-las a doerem, depois encolhia-as com uma careta de gozo, de quem tinha um certo prazer em aguentar a dor, para se julgar forte e destemido. Sentado sobre o liteiro, o pequeno João rememorava a epopeia da cavalgada e do trambolhão. A sensação deliciosa da queda livre, aterrando de joelhos. Queda que quase lhe foi fatal. Em dias de trovoada, gostava de contrariar a mãe e ir pela orla do terreiro e, a seguir, quando se via a luz dos relâmpagos a faiscar, se escutava o som dos trovões e se sentia a ferocidade do vento, o pequeno João ia para debaixo das árvores, por saber que estar ali era perigoso. Também gostava de ir apanhar salamandras, nos dias de chuva. E de gritar. Como ganhava amigdalites com frequência, teve de ser operado. Durante muito tempo teve as amígdalas expostas na mesinha de cabeceira do seu quarto, mergulhadas em álcool dentro de um frasco de vidro transparente. A mãe dava-lhe beijos nas bochechas ou na testa, que ele limpava com as mãos. No Natal recusava-se a ir com os outros rapazes buscar musgo ao monte para atapetarem o presépio da Igreja. Mas ia vigiar os seus colegas de perto, montado no seu potro. Olhava para eles como se fossem os pretos que o seu pai andava a civilizar lá na longínqua África. O menino Jesus era para ele um bebé fraldiqueiro que se ria como uma menina. Só que tinha um pirilau, em vez de um pirilampo, entre as pernas, como as meninas. Isso costumava dizer ele. À mãe. Naquele tempo, a consciência, ou inconsciência, política e religiosa chovia apenas nas cidades grandes. O resto parecia uma corrida de burros em roda de uma nora para levar a água ao nabal. João(zinho) chorava sempre que a mãe lhe mostrava a fotografia onde ele estava vestido de anjinho com uma coroa na cabeça. A sua mãe dizia-lhe que ele apenas se dava com os pobres ou com os ciganos. O João(zinho) punha-se então a chorar. Porque era verdade. Montava no seu potro e esporeava-o ainda com mais intensidade. Até lhe fazer sangue na barriga. O João, aprendiz de lorde dos lameiros, da gaita de centeio e dos arados, era muito aluado. Namorava com a Carlota, gabava-se de ter e de fazer gaiolas, também para pássaros. Pendurava-se nas traves do teto. Bebia vinho doce às escondidas. E, também às escondidas, fazia maroteiras às raparigas e até se punha a imitar o canto das cotovias para ver se as conseguia trazer pelo beicinho. Não era namorado de uma rapariga só. Tinha frieiras no inverno e por isso pontapeava os gatos. Dizia muitas coisas como se não as dissesse. E dizia outras ao mesmo tempo que a sua mãe, quando discutiam. Ela achava-lhe sempre piada. Tudo em seu redor era muito duvidoso. Cresceu rápido. E ainda mais rápido o mandaram para a tropa. Lá para Lisboa. Depois enfiaram-no num barco e enviaram-no para Angola, para a terra onde o seu pai tinha ido civilizar pretos. Isso continuavam a afirmar os brancos. Medrosos. Ao João Lorde disseram-lhe para os matar. A tiro. À facada. Ou à bomba. Afinal, a civilização não estava bem assimilada. Parece que os incivilizados a tinham aprendido às arrecuas.

